Análise da mora e repercussão nas ações revisionais e de execução de contratos bancários. Parte 1.
- Ricardo Kalil Lage
- 2 de set. de 2022
- 9 min de leitura
Atualizado: 5 de fev.
Conceito, Descaracterização, Consequências.

1. Conceito de Mora
Mora é o retardamento culposo no cumprimento da obrigação. Se por culpa do devedor, é solvendi; se por ato do credor, é accipiendi.
Os pressupostos da mora solvendi são: (a) existência de dívida líquida e vencida; (b) inexecução culposa pelo devedor; (c) interpelação judicial ou extrajudicial quando adívida não for a termo.
A mora accipiendi apresenta os seguintes requisitos: (a) existência de dívida líquida e vencida; (b) oferta do pagamento pelo devedor; (c) recusa do credor em receber.
As duas categorias são previstas no artigo 394 do Código Civil: “Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer”.
2. Encargos financeiros nos contratos bancários
São duas as espécies de encargos financeiros nos contratos bancários: (i) encargos do período da normalidade contratual; (ii) encargos decorrentes da mora.
Encargos do período da normalidade são fixados para o período de vigência normal do contrato, antes da inadimplência, compondo o cálculo inicial para estipular o valor da prestação mensal que deverá ser paga em razão do capital empregado na operação. Basicamente são: taxa dos juros remuneratórios, forma de capitalização dos juros, tarifas por serviços prestados, seguros e impostos.
Se a prestação contratual não for paga tempestivamente, incidirão os encargos moratórios, ou seja, estes somente são efetivamente aplicados em caso de atraso/não pagamento da obrigação principal. A Resolução CMN 4.882/2020 permite a cobrança dos seguintes encargos moratórios: multa, juros de mora e juros remuneratórios por dia de atraso.
Em síntese:
Encargos da normalidade contratual | Encargos Moratórios |
Juros remuneratórios | Multa |
Capitalização | Juros de mora |
Tarifas por serviços/seguros/impostos | Juros remuneratórios por dia de atraso |
3. Consequências da Mora
Ocorrendo a mora do devedor, o credor pode realizar atos que visam o cumprimento da obrigação, a exemplo da inclusão do nome do devedor nos cadastros públicos de proteção ao crédito, ligações telefônicas realizando a cobrança administrativa da dívida e a propositura de ações judiciais.
Além dos encargos moratórios autorizados pelo CMN, a interpretação sistemática dos artigos 389, 395 e 404 do Código Civil estabelece a responsabilidade do devedor por todos os prejuízos a que sua mora der causa.
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros, atualização monetária e honorários de advogado.
Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários e honorários de advogado.
Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária, juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.
Trata-se do princípio restitutio in integrum, imputando-se ao devedor o ressarcimento pelas despesas administrativas de cobrança que o credor tenha que suportar em razão da mora/inadimplemento.
No julgamento do Recurso Especial 1.361.699/MG (DJe 21/09/2017), decorrente de Ação Civil Pública, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, confirmou a incidência do artigo 395/CC. Foi ressaltado que a necessidade de reposição integral dos danos causados por um dos contratantes ao outro decorre do sistema jurídico, por extensão legal conferida pelo art. 51, XII, do CDC, de modo que a garantia da reparação total valerá tanto para o fornecedor quanto para o consumidor, independentemente de expressa previsão contratual.
Confirmou-se, ao final, a legalidade de cláusula contratual que previa a cobrança das despesas relativas a ligações telefônicas e honorários advocatícios.
4. Requisito da culpa do devedor
O elemento culpa, necessário à imputação da mora ao devedor, é previsto no artigo 396 do Código Civil: “Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora”.
O Enunciado 354 das Jornadas Cíveis do Conselho de Justiça Federal orienta que “A cobrança de encargos e parcelas indevidas ou abusivas impede a caracterização da mora do devedor”.
Percebe-se que, sem a caracterização de culpa do devedor, não há que se falar em mora.
Então, na petição inicial de uma ação revisional, ou nos embargos a execução, a parte financiada deve demonstrar que o contrato contém encargos ilegais ou abusivos pois, assim, inverte-se a mora, que deixa de ser do devedor e passa a ser do credor. Todavia, não é qualquer encargo financeiro ilegal que descaracteriza a mora do devedor.
A abusividade que contém o potencial para descaracterizar a mora do devedor é limitada aos encargos principais do período da normalidade – juros remuneratórios e capitalização - que compõe o cálculo que origina a obrigação firmada, antes mesmo de eventual mora/inadimplemento do devedor.
O encargo abusivo está no nascimento da obrigação, contribuindo para levar o devedor ao estado de mora.
5. Descaracterização da Mora. Consolidação da jurisprudência
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento que a caracterização da mora do devedor somente é afastada se ocorrer a constatação de que foram exigidos encargos abusivos durante o período da normalidade contratual, conforme Orientação 2 do Recurso Especial Repetitivo 1.061.530/RS (DJe 10/03/2009):
“REsp 1.061.530/RS. Orientação 2 - Configuração da Mora
a) O reconhecimento da abusividade nos encargos exigidos no período da normalidade contratual (juros remuneratórios e capitalização) descaracteriza a mora;
b) Não descaracteriza a mora o ajuizamento isolado de ação revisional, nem mesmo quando o reconhecimento de abusividade incidir sobre os encargos inerentes ao período de inadimplência contratual.”
Nas páginas 27/28 do voto da Ministra Relatora Nancy Andrighi consta a ressalva de que os chamados “encargos da normalidade” são notadamente os juros remuneratórios e a capitalização de juros. Os encargos moratórios, ainda que ilegais, não têm reflexos na caracterização da mora, haja vista a regularidade dos encargos que foram utilizados na base de cálculo para firmar a prestação no período da normalidade.
Portanto, o reconhecimento da cobrança de encargos abusivos no período de normalidade afasta a culpa da parte mutuária pelo inadimplemento da obrigação, e acarreta a descaracterização da mora debitoris.
Importante mencionar que o simples ajuizamento de ação revisional não descaracteriza a mora (Súmula 380/STJ, DJe 5/5/2009). Para tanto, é necessário preencher os requisitos cumulativos fixados na Orientação 4 do Recurso especial 1.061.530/RS, conforme demonstrado adiante.
Em relação aos encargos financeiros acessórios do período da normalidade contratual (tarifas, seguros, impostos), eventual abusividade não descaracteriza a mora do devedor, entendimento consolidado no Recurso Especial Repetitivo 1.639.320-SP, Orientação 2.3 (DJe 17/12/2018): “A abusividade de encargos acessórios do contrato não descaracteriza a mora”. Os excessos devem ser corrigidos, mas não interferem na caracterização da mora em que o devedor tenha incidido. Em síntese:
Afasta a mora do devedor | Não descaracteriza a mora do devedor |
Cobrança de encargos principais abusivos no período da normalidade contratual. | O simples ajuizamento de ação revisional. |
Encargos principais do período da normalidade: (a) taxa dos juros remuneratórios; (b) Capitalização destes. | Cobrança de encargos moratórios abusivos. |
Na prática, a parte financiada tem que demonstrar que a taxa de juros remuneratórios do contrato firmado é abusiva ou que existe capitalização de juros contratada de forma indevida.
6. Consequências da descaracterização da mora
Se a mora gera consequências, tais como ligações de cobrança, inclusão do nome do devedor em cadastros públicos de proteção ao crédito e ações judiciais promovidas pelo credor, a inversão da mora face comprovação da mora creditoris também tem importantes efeitos.
6.1. Efeitos da mora somente após recálculo da dívida/obrigação
Não existindo mora, não podem existir os atos consequentes da mora: ligações de cobrança, inclusão do nome do devedor em cadastros públicos, medidas judiciais de cobrança ou expropriação de bens.
A jurisprudência firmada é no sentido de somente autorizar a mora depois de realizado o recálculo do débito e, a contar daí, não realizado o pagamento, fazer a incidência da mora.
Veja-se: “Caracterizada a cobrança, pela instituição financeira, de parcela abusiva, somente restam autorizados os efeitos da mora depois de apurado o valor exato do débito (STJ, REsp 713.329/RS, J. 22/02/2006)”.
6.2. Retirada nome do devedor dos Cadastros Públicos
O mencionado Recurso Especial Repetitivo 1.061.530/RS - Orientação 4, faz a distinção entre o pedido liminar (objeto do item ‘a’), e a decisão de mérito ao final da lide (objeto do item ‘b’).
O item a) estipula os 3 requisitos cumulativos que devem fundamentar o pedido liminar de retirada do nome do devedor dos cadastros públicos de proteção ao crédito:
(i) houver ação fundada na existência integral ou parcial do débito;
ii) ficar demonstrado que a alegação da cobrança indevida se funda na aparência do bom direito e em jurisprudência consolidada do STF ou STJ;
iii) for depositada a parcela incontroversa ou prestada a caução fixada conforme o prudente arbítrio do juiz.
A inscrição/manutenção do nome do devedor em cadastro de inadimplentes, por ocasião da sentença ou do acórdão, seguirá a sorte do que houver sido decidido no mérito do processo quanto à mora. Autoriza-se a inscrição/manutenção apenas se configurada a mora.
6.3. Impossibilidade de multa face encargo ilegal
Nos Embargos de Divergência em Recurso Especial - EREsp 163.884 (DJ 24/09/2001) a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça firmou posicionamento no sentido de que a multa moratória "considera-se indevida uma vez que se reconheceu ter o devedor motivo para não efetuar o pagamento nos termos pretendidos”.
6.4. Possibilidade de manutenção do bem na posse do devedor
Em ações de busca e apreensão de veículos com garantia fiduciária, se for descaracterizada a mora, é cabível a manutenção do bem na posse do devedor (STJ, AgRg no AREsp 218.981/RS, DJ 22.08.2013).
7. Demonstração prática da abusividade da taxa de juros para descaracterização da mora
O § 2º do artigo 330 do Código de Processo Civil impõe ao autor da ação que questiona a validade de um contrato bancário que seja específico sobre qual cláusula contratual pretende revisar/anular e o motivo que justifica o pedido.
Neste mesmo sentido, antes mesmo do CPC/2015, foi consolidada a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
Súmula 381: “Nos contratos bancários é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”.
Resp. Repetitivo 1.061.530 - Orientação 5: “É vedado aos juízes de primeiro e segundo graus de jurisdição julgar, com fundamento no art. 51 do CDC, sem pedido expresso, a abusividade de cláusulas nos contratos bancários.”
Tecnicamente, para a caracterização de uma taxa de juros abusiva, faz-se necessária a análise dos seguintes elementos, ou características, da relação contratual, para que seja realizada uma comparação com a taxa média de mercado que é divulgada pelo Banco Central:
(i) Natureza jurídica da parte (pessoa natural ou jurídica). |
(ii) Natureza da contratação: financiamento, empréstimo pessoal, capital de giro, com/sem garantias, etc. |
(iii) Taxa de juros remuneratórios. |
(iv) Periodicidade da capitalização da taxa de juros (diária, mensal, anual) e respectivos percentuais. |
(v) Previsão e valor de outras tarifas/despesas e possibilidade de escolha da forma de pagamento, se à vista ou diluído nas prestações contratuais. |
(vi) Custo Efetivo Total (CET). |
(vii) Data da celebração. |
Além da comparação entre as taxas, a exposição dos fatos deve levar em consideração as particularidades do caso concreto, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de impossibilidade da mera comparação.
Primeiro, deve ser compreendido que a taxa média de mercado divulgada pelo Bacen é apenas uma amostra das taxas praticadas no mercado que, entretanto, não deve ser adotado indistintamente, já que existem peculiaridades na concessão do crédito que não permite a fixação de uma taxa única, sem qualquer maleabilidade (STJ, AgInt no REsp 2.151.465/SC, 3ª T, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJe 22/08/2024) .
Segundo, a mera comparação entre a taxa de juros remuneratórios pactuada e a taxa média de mercado não é suficiente para o reconhecimento da abusividade do encargo, firmado em contratos bancários (STJ AgInt no REsp 1.989.279/RS, 3ª T, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva (DJe 15/5/2024).
Observe o seguinte julgado:
AgInt no REsp 1.949.441/SP, 4ª T, Rel Min. Luis Felipe Salomão (DJ 09/09/2022): 2. A verificação da abusividade dos juros não é taxativa, não observa critérios genérico e universais, de modo que o fato de a taxa de juros remuneratórios contratada ser o dobro ou triplo ou outro múltiplo da taxa apurada pelo Banco Central não determina o reconhecimento de abusividade.
A orientação jurisprudencial firmada é que devem ser levados em consideração na análise da abusividade os seguintes fatores, dentre outras particularidades:
(i) a situação da economia na época da contratação
(ii) o custo da captação dos recursos
(iii) o risco envolvido na operação
(iv) o relacionamento mantido com o banco
(v) as garantias ofertadas
É insuficiente para permitir a revisão/alteração: (I) Menção genérica às “circunstâncias da causa”, ou expressão equivalente; (II) O simples cotejo entre a taxa de juros prevista no contrato e a média de mercado divulgada pelo BACEN; (III) A aplicação de algum limite adotado, aprioristicamente, pelo próprio Tribunal estadual.
Portanto, os fundamentos do pedido devem ser feitos de forma precisa, razão pela qual expressões genéricas do tipo “limitação constitucional dos juros” ou “vedação de capitalização de juros” não surtirão nenhum efeito prático. A parte devedora deve indicar especificamente a cláusula, o encargo contratual e a razão (fundamento) da ilegalidade.
7. Conclusão
Foi visto que o conceito de mora contido no Código Civil, assim como os requisitos e efeitos de sua caracterização, são plenamente aplicáveis aos contratos bancários. Demonstrou-se as consequências práticas em caso de descaracterização da mora do devedor, impedindo o credor de realizar atos de cobrança extrajudicial ou judicial até que a obrigação seja recalculada com a exclusão dos encargos tidos por abusivos.
Destacou-se que é necessária a demonstração de que a taxa de juros remuneratórios supera substancialmente a taxa média de mercado para a mesma espécie de operação na mesma época da contratação, em análise conjunta com as particularidades do caso concreto. Ou que ocorre a capitalização dos juros remuneratórios sem a contratação de forma expressa e clara.
Os efeitos práticos da descaracterização da mora, são:
(i) O recálculo Recálculo da Obrigação: O tomador de crédito pode requerer a revisão do contrato e o recálculo da obrigação, com a redução dos juros à taxa média de mercado ou sem a capitalização eventualmente impugnada, e sem o acréscimo de nenhum encargo moratório.
(II) Repetição de Indébito: Os valores pagos a maior durante o período da normalidade contratual devem ser restituídos ao tomador do crédito.
Por fim, reforça-se, o sucesso da argumentação jurídica da parte devedora que pretende revisar os encargos financeiros em contrato bancário depende de uma análise criteriosa dos elementos contratuais em comparação com informações prestadas pelo Banco Central do Brasil.
Comments