O Dever de Consulta ao DICT e a Responsabilidade Civil Preventiva no Pix: a nova dimensão do dever de segurança das instituições financeiras e de pagamento.
- Ricardo Kalil Lage

- 4 de nov.
- 16 min de leitura
Atualizado: 13 de nov.

Introdução
A crescente sofisticação das fraudes praticadas por meio de engenharia social (manipulação psicológica com base na urgência, medo e confiança) tem imposto desafios relevantes à proteção de toda a sociedade e à segurança do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB).
Nesse cenário, o Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (DICT), instituído e operado pelo Banco Central, assume papel central na prevenção de fraudes e na responsabilização das instituições financeiras e de pagamento. Mais do que um simples cadastro de chaves Pix, o DICT constitui uma base de dados estruturada para mitigar riscos, permitindo o rastreamento, bloqueio e recuperação de valores em situações suspeitas.
A Resolução BCB nº 1, de 12 de agosto de 2020, que disciplina o funcionamento do Pix, impõe às instituições participantes obrigações normativas de verificação prévia antes da execução de qualquer transação. Dentre elas, destaca-se o dever de consultar as informações vinculadas à chave Pix recebedora, a fim de identificar:
(i) notificações de infração anteriores,
(ii) histórico de bloqueios cautelares,
(iii) divergências cadastrais, e
(iv) marcações de suspeita de fraude associadas ao CPF ou CNPJ.
Essa verificação não é facultativa. Trata-se de um dever positivo de diligência, cujo descumprimento pode caracterizar falha na prestação do serviço e gerar responsabilidade civil objetiva, nos termos do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.
A partir desse marco, o artigo se propõe a examinar a responsabilidade civil preventiva das instituições participantes do Pix, enfatizando o papel do DICT como ferramenta obrigatória de verificação e do Mecanismo Especial de Devolução (MED) como instrumento complementar de reparação.
Também se analisa o cabimento da ação de exibição de documentos, como meio processual de controle judicial da conduta das instituições, e os precedentes recentes do Superior Tribunal de Justiça que consolidam a aplicação do dever de segurança no contexto digital.
Em síntese, defende-se que a efetiva utilização do DICT representa o eixo da governança de segurança do sistema Pix e que a omissão nessa consulta implica violação do dever de cuidado objetivo, ensejando a responsabilização civil das instituições financeiras e de pagamento que atuam no arranjo.
1. Possibilidade de Rejeição de Transações Suspeitas
A Resolução BCB nº 1, de 12 de agosto de 2020, disciplina o funcionamento do Pix e impõe obrigações normativas às instituições participantes quanto à verificação da legalidade e da segurança das transações.
O Capítulo X trata da autorização para iniciação e da rejeição de transações por parte das instituições financeiras e de pagamento, estabelecendo de forma clara que as instituições participantes do Pix têm o dever de rejeitar transações quando houver indícios de irregularidade ou suspeita de fraude.
Para fins de prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, todas as operações, inclusive as rejeitadas, deverão ser monitoradas e tratadas nos termos da Circular nº 3.978/2020 (parágrafo único do art. 38), evidenciando que a análise de risco é requisito prévio à execução da ordem de pagamento.
A instituição provedora da conta do usuário pagador tem o dever de rejeitar a operação - dentre outros motivos elencados no art. 38 - sempre que houver fundada suspeita de fraude ou problemas na autenticação do pagador (art. 38, II, IV).
O dever de rejeição também se aplica ao iniciador de transação de pagamento (ITP). O art. 38-A determina que, havendo fundada suspeita de fraude, a instituição deve recusar a ordem, impedindo a sua finalização.
No mesmo sentido, o art. 39 dispõe que a instituição responsável pela conta recebedora deve igualmente rejeitar a transação quando houver fundada suspeita de fraude ou problemas na identificação do usuário recebedor.
Além de rejeitar, o art. 39-B permite o bloqueio cautelar dos recursos recebidos, impondo que tal medida seja efetivada de forma imediata, simultânea ao crédito na conta do beneficiário. Essa providência visa impedir a dissipação de valores enquanto se realiza a avaliação de risco, evitando o sucesso do agente fraudador.
Vê-se que todos os elos da cadeia de execução do Pix - pagador, iniciador de pagamento e recebedor - devem agir preventivamente para evitar a concretização de operações fraudulentas, em consonância com a segurança do sistema financeiro.
A regulamentação ainda detalha critérios objetivos que devem ser considerados na análise de suspeita de fraude, estabelecendo o § 1º do art. 39-B que a avaliação deve contemplar:
(i) Quantidade de notificações de infração vinculadas ao usuário recebedor;
(ii) Tempo decorrido desde a abertura da conta transacional;
(iii) Horário e o dia da transação;
(iv) Perfil do usuário pagador - inclusive quanto à recorrência de operações entre as partes;
(v) Outros fatores que o próprio participante entenda pertinentes.
A norma prevê expressamente que a análise de fraude deve levar em conta o perfil do usuário pagador e a recorrência de transações entre as partes. Transações atípicas - como transferência de valor elevado, para destinatário desconhecido, realizada fora do padrão de comportamento do cliente - devem acionar os mecanismos automáticos de prevenção.
O rol é exemplificativo, permitindo-se às instituições adotarem critérios de monitoramento contínuo e adequados ao perfil de risco.
Se após a verificação for constatada a suspeita de fraude, os recursos devem ser devolvidos ao pagador por meio do Mecanismo Especial de Devolução (MED), conforme determina o § 6º do art. 39-B.
É um dever de caráter positivo, que não depende da anuência do cliente/usuário final e cuja omissão caracteriza falha na prestação do serviço.
2. Mecanismo Especial de Devolução (MED)
O Mecanismo Especial de Devolução (MED) é previsto nos artigos 41-B a 41-I do Regulamento do Pix, sendo um relevante instrumento de proteção ao cliente diante de fraudes no arranjo de pagamentos instantâneos.
Tem como principal finalidade proteger o usuário contra as transferências fraudulentas. O MED impõe às instituições financeiras e de pagamento um dever de diligência e de cooperação interinstitucional, especialmente por meio do DICT (Diretório de Identificadores de Contas Transacionais).
As devoluções dos recursos podem ser iniciadas pelo prestador de serviços de pagamento do recebedor, por iniciativa própria, após bloqueio cautelar, ou ainda por solicitação do prestador de serviços do pagador, via DICT[1] (art. 41-C). O art. 41-D reforça que essas devoluções dependem da abertura e conclusão do procedimento de notificação de infração, com bloqueio imediato dos valores na conta recebedora, ainda que de forma parcial, conforme saldo disponível.
O Manual Operacional do DICT (art. 41-E) prevê prazos máximos de bloqueio, mecanismos de rastreamento e devoluções parciais. O art. 41-I fixa a responsabilidade da instituição recebedora pelos prejuízos em caso de recusa injustificada da notificação de infração.
Em síntese, o MED cria um fluxo de cooperação entre instituições para garantir o bloqueio e a devolução célere de valores em hipóteses de fraude.
3. O papel do DICT na prevenção a fraudes
O Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (DICT) é uma peça central do sistema Pix. Sua finalidade não se limita apenas a facilitar o processo de iniciação das transações, mas, principalmente, de mitigar riscos de fraude e assegurar o bom funcionamento do Sistema de Pagamentos Instantâneos - SPI.
O DICT, disciplinado a partir do art. 45, armazena informações dos usuários finais e de suas contas transacionais. Operado pelo Banco Central, conectado à Rede do Sistema Financeiro Nacional (RSFN) e dotado de elevados padrões de segurança (art. 46), o DICT deve ser acessado direta ou indiretamente por todos os participantes (art. 48).
Suas funcionalidades estão descritas no artigo 54 e incluem consultas às informações da conta recebedora, notificações de infração e verificação de chaves registradas, cujo objetivo é validar a confiabilidade do recebedor. Diga-se, ainda, da funcionalidade de recuperação de valores, que permite rastrear, bloquear e devolver quantias transferidas em razão de suspeita de fraude.
O DICT armazena não apenas dados técnicos, como o código ISPB[2] do participante e o número da agência e da conta, mas também informações pessoais e empresariais, incluindo nome civil ou social, nome empresarial, número de inscrição no CPF ou no CNPJ e, quando aplicável, o nome fantasia do estabelecimento (art. 59).
Esse detalhamento mostra que o sistema foi concebido para possibilitar um cruzamento eficiente de informações, conferindo maior transparência e confiabilidade às transações, ao mesmo tempo em que amplia as possibilidades de detecção de usos indevidos ou fraudulentos.
Os participantes diretos do Sistema de Pagamentos Instantâneos (SPI) são obrigados a acessar diretamente o DICT, enquanto os demais podem se valer de um intermediário, desde que assegurem, no mínimo, a realização de operações como registro, exclusão, portabilidade e, especialmente, as consultas e verificações voltadas à segurança.
Tal exigência demonstra que todos os agentes do arranjo de pagamentos têm responsabilidade concreta de integrar-se ao DICT, de forma a garantir que a checagem e atualização das informações sejam etapas necessárias antes da finalização de qualquer transação (arts. 52/53).
A possibilidade de exclusão das chaves Pix também revela a preocupação regulatória com a prevenção de fraudes. Nos termos do art. 60, II e V, além de poder ser solicitada pelo próprio usuário final, a exclusão deve obrigatoriamente ser requerida pelo participante do Pix quando houver suspeita, tentativa ou efetivação de uso fraudulento da chave.
3.1. Consultas da Chave Pix
Previsto nos artigos 75 a 78-C, as consultas às chaves Pix ao DICT devem ser feitas com finalidades específicas, como iniciar um Pix, identificar dados para credenciamento de limites ou executar verificações de segurança em transações realizadas por meio de iniciadores de pagamento.
O sistema retorna todas as informações vinculadas à chave consultada, inclusive as registradas para fins de segurança. Em caso de inexistência da chave, envia mensagem específica de erro.
A verificação de chaves registradas tem como finalidade conferir se as chaves estão de fato cadastradas, reduzindo a probabilidade de fraudes envolvendo chaves inexistentes ou falsas.
Os artigos 78-K a 78-M detalham a funcionalidade de consultas vinculadas às chaves Pix para fins de segurança, determinando que essas consultas sejam realizadas exclusivamente pelos participantes com a finalidade de alimentar mecanismos internos de análise de fraude.
Reforça-se que o art. 32, inciso V, prevê a responsabilidade das instituições por fraudes no âmbito do Pix decorrentes de falhas nos seus mecanismos de gerenciamento de riscos, incluindo a não aplicação das medidas de gestão de risco definidas no Regulamento e em dispositivos normativos complementares. E que o inciso VII do art. 32 é expresso ao prescrever o dever de utilizar as informações vinculadas às chaves Pix para fins de segurança do sistema, como um dos fatores a serem considerados para fins de autorização e de rejeição de transações.
O art. 89, § 1º, diz que os participantes devem adotar, no mínimo, os seguintes mecanismos para garantir a segurança da entrada e da saída de recursos nas contas transacionais por meio de transações Pix:
“I - utilizar solução de gerenciamento de risco de fraude que contemple ao menos as informações de segurança armazenadas no DICT e que seja capaz de identificar transações Pix atípicas ou não compatíveis com o perfil do cliente para:
a) utilizar o limite máximo diferenciado de tempo para autorizar uma transação com suspeita de fraude, conforme previsto no Manual de Tempos do Pix;
b) rejeitar uma transação por fundada suspeita de fraude, conforme previsto nos arts. 38 e 39 deste regulamento; e
c) bloquear cautelarmente recursos oriundos de uma transação Pix, conforme previsto no art. 39-B deste regulamento; e
II - disponibilizar, em canal eletrônico em que uma transação Pix possa ser iniciada, de acesso amplo aos clientes, informações sobre os cuidados que os clientes devem ter para evitar fraudes.”
Percebe-se que a norma impõe medidas concretas de verificação prévia, que envolvem, inclusive, a consulta automática às bases de dados do DICT antes da efetivação da operação.
Soma-se a isso a obrigação de manter bases de dados atualizadas, a vedação de uso de contas envolvidas em notificações de infração e a guarda da documentação técnica à disposição do Banco Central.
A interpretação sistemática e teleológica da norma obriga que, como parte da avaliação de suspeita de fraude, seja verificado se há notificações de infração vinculadas ao usuário recebedor com consulta ao DICT.
Para avaliar a suspeita de fraude, uma das variáveis que deve ser considerada é “a quantidade de notificações de infração vinculadas ao usuário recebedor” (§ 1º do art. 39-B). Isso pressupõe que o participante do Pix tem acesso a essa informação, o que se dá por meio do DICT.
Por isso, as instituições participantes têm o dever de checar previamente a idoneidade da conta recebedora, sendo essa verificação um pressuposto da própria regularidade da transação.
Se houver incongruências cadastrais ou suspeita de fraude por notificações anteriores, a transação não deve ser processada. O retorno do DICT restringe-se às informações registradas para fins de segurança, vedando o uso direto por usuários finais.
A prevenção de fraudes depende do monitoramento ativo das instituições financeiras e de pagamento, que devem integrar essas informações em seus sistemas de avaliação de risco. O conjunto de medidas reforça que a prevenção à fraude passa não apenas pelo monitoramento das transações em si, mas também pelo controle do uso de informações armazenadas no sistema.
Esse modelo cria um fluxo contínuo de proteção: prevenção, identificação, bloqueio, devolução e, se necessário, responsabilização.
3.2. Notificação de Infração
O art. 78-F impõe que seja realizada a notificação de infração sempre que houver fundada suspeita de uso fraudulento do arranjo, seja em transações liquidadas no SPI, nos sistemas internos do participante ou em transações rejeitadas por suspeita de fraude.
Além disso, a funcionalidade de recuperação de valores gera automaticamente notificações de infração, seja pelo algoritmo interno do DICT ou pela priorização definida pelo participante do usuário pagador.
Uma vez recebida, a notificação deve ser analisada pelo participante, que pode aceitá-la ou rejeitá-la. Caso seja aceita, o DICT passa a registrar e marcar a chave Pix e o CPF ou CNPJ do usuário recebedor como suspeitos de fraude, criando um alerta sistêmico que auxilia na proteção de outros usuários.
Conforme o art. 78-H, a notificação de infração pode estar associada a uma solicitação de devolução de valores, reforçando o caráter reparatório e preventivo desse instrumento.
O art. 78-I autoriza o prestador de serviço de pagamento do usuário pagador a solicitar devolução de valores quando houver fundada suspeita de fraude, seja por iniciativa própria ou a pedido do cliente. É vedada múltiplas solicitações de devolução para a mesma transação (art. 78-J), preservando a segurança e evitando abusos.
Portanto, independentemente de o cliente autorizar a transferência ou pagamento de determinada transação, tanto a instituição pagadora quanto à instituição que detém a conta que recebe os recursos, devem adotar medidas de segurança para verificação da legalidade da transação, e, dentre estas medidas, encontra-se o dever de consultar as informações da chave Pix recebedora que constam cadastradas no DICT.
3.3. Da Resolução BCB 501, de 11/09/2025
A Resolução BCB 501/2025 altera a Resolução BCB 142/2021, que dispõe sobre procedimentos e controles para prevenção de fraudes na prestação de serviços de pagamento.
Incluiu-se o art. 2º-A, que impõe o dever de rejeição das transações de pagamento quando as instituições “constatarem identificação de fundada suspeita de envolvimento de fraude” nas contas destinatárias. O § 2º estabelece que essa avaliação deve incluir fatores a critério de cada instituição, podendo inclusive se utilizar de informações constantes em sistemas eletrônicos e bases de dados de caráter público ou privado.
É mais uma norma que prevê o dever de consulta de informações no DICT - sistema eletrônico e base de dado de caráter público - como forma de prevenção às fraudes digitais.
4. Da Exibição de Documentos das Consultas ao DICT
A ação de exibição de documentos (arts. 396 a 404 do CPC) tem como finalidade assegurar ao interessado o conhecimento de documentos comuns às partes ou que são essenciais para o exercício do direito de ação.
As previsões normativas referentes ao procedimento do MED e do DICT geram atos administrativos privados, documentados dentro das instituições financeiras e de pagamento, cujos documentos devem estar a disposição do Banco Central e podem ser objeto de exibição judicial.
Neste contexto, há a possibilidade de ajuizamento de ação de exibição de documentos visando compelir a instituição financeira ou de pagamento a demonstrar se consultou o DICT antes de autorizar a transação Pix suspeita, bem como quais informações constavam vinculadas à chave da conta recebedora.
Por isso, o cliente/usuário final que foi vítima de uma fraude pode requerer judicialmente, tanto da instituição pagadora quanto da recebedora:
(i) Cópia ou relatório do sistema de segurança utilizado na transação em análise;
(ii) Cópia do registro da consulta à chave Pix, com data e horário;
(iii) Resultado da verificação cadastral da conta recebedora;
(iv) Eventuais notificações de infração associadas àquela chave, como bloqueios, devoluções parciais ou rejeição de notificação de infração;
(v) Informações que embasaram a não rejeição ou não bloqueio da transação.
(vi) Comprovação da instauração (ou não) do MED;
Esses documentos são comuns às partes, pois decorrem da relação contratual entre cliente e instituição financeira, e são indispensáveis para que o cliente possa avaliar a possibilidade de ingressar com eventual ação indenizatória por falha na prestação do serviço, pois demonstram se a instituição adotou ou não as diligências preventivas exigidas pela regulação.
Dada a hipossuficiência técnica do usuário final em face das instituições financeiras e de pagamento, é cabível a distribuição dinâmica da prova (art. 373, II e III do CPC) e/ou a inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII do CDC), cabendo à instituição comprovar – prova positiva - que realizou as verificações de segurança exigidas, que consultou o DICT e não identificou indícios de fraude, sendo a conta recebedora aparentemente regular, segundo os parâmetros normativos.
Se a instituição não consultou o DICT ou ignorou alertas de inconsistência ou fraude, assumiu o risco de proceder com a transação e restará caracterizada a falha na prestação do serviço, nos moldes do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor.
A omissão na apresentação dos documentos pode, inclusive, gerar presunção relativa de veracidade dos fatos narrados pelo autor, nos termos do art. 400 do CPC.
Assim, não há óbice para que a vítima de fraude financeira exija a apresentação dos documentos ligados ao DICT e ao Mecanismo Especial de Devolução, uma vez que se trata de um procedimento essencial à segurança do Sistema de Pagamentos Brasileiro.
5. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça sobre o dever de diligência
O Superior Tribunal de Justiça vem reconhecendo que, havendo falha no dever de segurança e diligência, incide a responsabilidade objetiva da instituição, nos termos do art. 14 do CDC.
O julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2.638.404-SP tratou de um caso em que a autora foi vítima de fraude ao participar de um leilão virtual falso, tendo depositado o valor do veículo em conta de estelionatários. O Tribunal de origem havia afastado a responsabilidade da instituição financeira, reconhecendo culpa exclusiva de terceiro.
Contudo, o STJ entendeu de forma diversa: destacou que o banco não comprovou ausência de falha em seu serviço, pois deixou de apresentar os extratos da corré, apesar de intimado. Assim, reafirmou a jurisprudência segundo a qual as instituições bancárias respondem objetivamente pelos danos decorrentes de golpes bancários, por lhes caber adotar mecanismos de prevenção adequados. Dessa forma, manteve-se a responsabilização da instituição financeira, negando provimento ao agravo interno.
No mesmo sentido, encontram-se os seguintes precedentes:
“6. Se a instituição financeira não demonstrar que cumpriu com as diligências que dela se esperava, contrariando as regulamentações dos órgãos competentes, resta configurada a falha no dever de segurança.”
(REsp n. 2.124.423/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/8/2024, DJe de 27/8/2024).
“3. O dever de segurança é noção que abrange tanto a integridade psicofísica do consumidor, quanto sua integridade patrimonial, sendo dever da instituição financeira verificar a regularidade e a idoneidade das transações realizadas pelos consumidores, desenvolvendo mecanismos capazes de dificultar fraudes perpetradas por terceiros, independentemente de qualquer ato dos consumidores.”
(REsp n. 2.052.228/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 15/9/2023).
A jurisprudência do STJ entende que o dever de adotar mecanismos que obstem operações totalmente atípicas em relação ao padrão de consumo dos consumidores enseja responsabilidade do prestador de serviços, que responderá pelo risco da atividade, pois a instituição financeira precisa se precaver a fim de evitar golpes desta natureza.
No mesmo sentido, a não realização da verificação da chave Pix impede que a instituição tenha acesso aos eventuais sinais de anormalidade que incidem sobre a chave destinatária, contribuindo para o evento danoso.
6. Exemplo prático: como a aplicação da norma pode evitar fraudes
No golpe do falso leilão, a vítima acredita que está participando de um leilão legítimo de veículos ou bens e realiza depósito em conta indicada pelos fraudadores.
Nessas situações, a simples consulta às informações vinculadas à chave Pix do recebedor poderia revelar inconsistências relevantes - como notificações de infração anteriores, divergências cadastrais ou marcação de suspeita de fraude no CPF ou CNPJ vinculado.
Se tais dados fossem efetivamente acessados e considerados antes da liquidação, a instituição pagadora teria elementos objetivos para rejeitar ou bloquear a transação, evitando a dissipação dos valores.
O exemplo demonstra que os dispositivos normativos constituem ferramentas práticas de proteção, cujo uso diligente é capaz de reduzir significativamente a incidência e o sucesso de fraudes eletrônicas.
7. Conclusão
A arquitetura normativa do Pix, delineada pela Resolução BCB nº 1/2020, consolidou um novo modelo de responsabilidade civil preventiva, impondo às instituições financeiras e de pagamento deveres positivos de diligência e cooperação interinstitucional.
Entre esses deveres, destaca-se a obrigação de consulta prévia ao Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (DICT), medida que representa o ponto nevrálgico da governança de segurança do sistema. A consulta às informações vinculadas à chave Pix - como histórico de notificações de infração, bloqueios, devoluções e irregularidades cadastrais - é etapa obrigatória e documentável, condição para a autorização válida da transação.
Os participantes do Pix devem se responsabilizar por fraudes decorrentes de falhas nos seus mecanismos de gerenciamento de riscos, compreendendo a inobservância de medidas de gestão de risco definidas no Regulamento Pix e em dispositivos normativos complementares. Têm, ainda, que utilizar as informações vinculadas às chaves Pix para fins de segurança do sistema, como um dos fatores a serem considerados para análise da autorização e da rejeição de transações.
A análise de risco, portanto, não é um ato discricionário, mas um requisito normativo e técnico para a regularidade da transação Pix. Se a instituição não realizar a consulta ao DICT — ou se ignorar alertas ali existentes —, assume o risco do evento danoso, respondendo pelos prejuízos suportados pelo usuário final.
A inobservância dessa verificação traduz falha no dever de segurança, uma vez que priva o sistema de sua principal barreira de proteção contra operações fraudulentas. Nesses casos, incide a responsabilidade civil objetiva da instituição, nos termos do art. 14 do CDC, por falha na prestação do serviço e violação do dever normativo de cautela.
O Mecanismo Especial de Devolução (MED), por sua vez, atua como instrumento complementar de correção e mitigação de danos, permitindo o bloqueio e a devolução célere dos valores subtraídos, reforçando a lógica de cooperação entre os participantes do Pix.
A ação de exibição de documentos surge como meio legítimo e necessário para verificar se as instituições efetivamente cumpriram a obrigação de consulta ao DICT, permitindo ao consumidor-vítima de fraude comprovar a conduta omissiva da instituição e avaliar a existência de responsabilidade civil.
A jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça confirma essa tendência ao reconhecer que, diante da ausência de comprovação de diligência mínima, configura-se falha no dever de segurança e responsabilidade pelo risco da atividade.
Assim, o DICT não é apenas um repositório de chaves Pix, mas um mecanismo estruturante de responsabilidade: seu uso ativo representa o divisor entre a atuação preventiva - que reforça a confiança no sistema - e a negligência que viabiliza a fraude.
A consolidação dessa compreensão fortalece o caráter ético e sistêmico do direito bancário contemporâneo, no qual a segurança e a transparência tecnológica se convertem em expressões concretas da boa-fé e da tutela do consumidor, reafirmando que, no Pix, prevenir é dever - e não mera opção.
8. Referências
Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Artigos 398/404.
Resolução BCB nº 1, de 12 de agosto de 2020. Institui o arranjo de pagamentos Pix e aprova o seu Regulamento.
Resolução BCB nº 501, de 11 de setembro de 2025. Altera a Resolução BCB nº 142, de 23 de setembro de 2021, que dispõe sobre procedimentos e controles para prevenção de fraudes na prestação de serviços de pagamento.
Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 2.638.404-SP, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 11/02/2025, DJe 14/02/2025.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.124.423/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/8/2024, DJe de 27/8/2024.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.052.228/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/9/2023, DJe de 15/9/2023.
[1] Diretório de Identificadores de Contas Transacionais.
[2] Identificador de Sistema de Pagamentos Brasileiro é um código único de oito dígitos atribuído pelo Banco Central às instituições financeiras para identificá-las no Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB).




Comentários