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Vedação ao fundamento surpresa da decisão

  • Foto do escritor: Ricardo Kalil Lage
    Ricardo Kalil Lage
  • 28 de fev. de 2024
  • 6 min de leitura

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1. Dever de fundamentação e direito ao contraditório

 

O Código de Processo Civil introduz nos doze primeiros artigos as normas fundamentais do processo civil brasileiro, sendo uma fonte de interpretação das regras processuais, que devem ser aplicadas conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil (art. 1º CPC).

 

Diz o artigo 10 do Código de Processo Civil que “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. O preceito é uma extensão (ampliação) do princípio do contraditório previsto no artigo 9º do CPC, que estabelece a regra geral de ouvir previamente a parte para que seja proferida uma decisão contra si. Desta forma, dá-se existência real ao artigo 7º/CPC, que impõe ao juiz o dever de “zelar pelo efetivo contraditório”.

 

O texto do artigo 10 trata da vedação ao fundamento surpresa da decisão. O juízo somente poderá utilizar em suas decisões os fatos e fundamentos sobre os quais as partes tenham se manifestado, mesmo que se trate de matéria apreciável de ofício (aquela que não precisa de requerimento da parte para o pronunciamento judicial).

 

O contraditório ampliado está em sintonia com o Princípio da Cooperação previsto no artigo 6º do CPC: “Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. A cooperação orienta o juízo a conceder às partes a oportunidade de manifestação sobre as questões que possam influenciar no julgamento do processo.

 

Levando em consideração a possibilidade de surgir novos fatos no transcorrer da ação, o parágrafo único do artigo 493 determina que, se o juiz constatar de ofício a existência de um fato novo, ouvirá as partes sobre ele antes de decidir.

 

Nas disposições referentes ao processo de execução há outro exemplo da necessidade de ouvir as partes para decidir com base em matéria de ordem pública. Conforme § 5º do art. 921/CPC: “o juiz, depois de ouvidas as partes, no prazo de 15 (quinze) dias, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição de que trata o § 4º e extinguir o processo”.


No segundo grau de jurisdição também há previsão sobre a necessidade de manifestação das partes sobre fatos e fundamentos que possam influenciar na decisão, monocrática ou colegiada.

 

Prescreve o art. 933 do CPC que se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada, que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de 5 dias. Se a constatação ocorrer durante a sessão de julgamento, esse será imediatamente suspenso a fim de que as partes se manifestem especificamente. Se ocorrer em vista dos autos, deverá o juiz que a solicitou encaminhá-los ao relator, que deverá providenciar a intimação das partes para, em seguida, solicitar a inclusão do feito em pauta para prosseguimento do julgamento, com submissão integral da nova questão aos julgadores (art. 933, §§ 1º 2º, CPC).


Confirmando tudo que foi exposto, o artigo 938, § 1º, prevê que, constatada a ocorrência de vício sanável, inclusive aquele que possa ser conhecido de ofício, o relator determinará a realização ou a renovação do ato processual, no próprio tribunal ou em primeiro grau de jurisdição, intimadas as partes.


2. Consequências processuais

 

O inciso IX do artigo 93 da CF/1988 afirma que nos julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário todas as decisões serão fundamentadas, sob pena de nulidade, preceito constitucional reforçado pelo artigo 11 do CPC: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.”

 

Sendo certo que a ofensa ao contraditório ampliado enseja a nulidade da decisão, por existir fundamento que as partes não tiveram oportunidade de falar, é necessário que ocorra a correção deste vício de procedimento para, somente após as manifestações dos interessados processuais, ser proferida nova decisão com a devida motivação e fundamentação, conforme preceitua o artigo 489, II, do CPC.

 

Portanto, a consequência da caracterização de um fundamento surpresa é a nulidade da decisão que não observa as garantias da segurança jurídica, do contraditório e do devido processo legal, uma vez que, “todas as partes processuais, interessadas no resultado do feito, devem ter efetiva oportunidade de participar do debate a respeito dos fundamentos relevantes para a formação do convencimento do julgador” (STJ, AgInt no REsp 2.07.4936/SP, DJe 16/11/2023).

 

3. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça

 

O fundamento ao qual se refere o artigo 10/CPC é o fundamento jurídico - circunstância de fato qualificada pelo direito, em que se baseia a pretensão ou a defesa, ou que possa ter influência no julgamento, mesmo que superveniente ao ajuizamento da ação -, não se confundindo com o fundamento legal (dispositivo de lei regente da matéria). A aplicação do princípio da não surpresa não impõe, portanto, ao julgador, que informe previamente às partes os dispositivos legais passíveis de aplicação para o exame da causa. O conhecimento geral da lei é presunção jure et de jure (EDcl no REsp 1.280.825/RJ, DJe de 1º/8/2017).

 

Significa dizer que não há decisão-surpresa quando o magistrado, diante dos limites da causa de pedir, do pedido e do substrato fático delineado nos autos, realiza a tipificação jurídica da pretensão no ordenamento jurídico posto, aplicando a lei adequada à solução do conflito, ainda que as partes não a tenham invocado (iura novit curia) e independentemente de ouvi-las, até porque a lei deve ser de conhecimento de todos, não podendo ninguém se dizer surpreendido com sua aplicação (AgInt no AREsp 2.019.496/SP, DJe 10/8/2022).

 

Desta forma, de acordo com a jurisprudência firmada, o enunciado processual da "não surpresa" não implica exigir do julgador que toda solução dada ao deslinde da controvérsia seja objeto de consulta às partes antes da efetiva prestação jurisdicional, mormente quando já lhe foi oportunizada manifestação acerca do ponto em discussão" (AgInt no REsp 1841905/MG, DJe 02/09/2020). A adoção de fundamentos decorrentes do pedido e dos fatos delineados nos autos sobre os quais as partes tiveram oportunidade de se manifestar, com a consequente tipificação jurídica e aplicação da lei ao caso concreto, não configura decisão surpresa (AgInt no AREsp 2.389.969/BA, DJe 21/12/2023).

 

Decidiu-se, ainda, que o art. 10 do CPC não se refere aos requisitos de admissibilidade recursal (AgInt no REsp 2.031.624/MG, DJe 15/12/2023).

 

Exemplificando a aplicação prática da vedação ao fundamento surpresa, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decretou a nulidade de Acórdão que extinguiu o processo sem julgamento do mérito por insuficiência de provas, sem que esse fundamento adotado tenha sido previamente debatido pelas partes ou objeto de contraditório preventivo. Pelo teor didático, destacam-se os seguintes trechos da Ementa:

 

Recurso Especial 1.676.027/PR (DJe 19/12/2017)

 

“2. O art. 10 do CPC/2015 estabelece que o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”

 

“3.  Trata-se de proibição da chamada decisão surpresa, também conhecida como decisão de terceira via, contra julgado que rompe com o modelo de processo cooperativo instituído pelo Código de 2015 para trazer questão aventada pelo juízo e não ventilada nem pelo autor nem pelo réu. (...)”

 

"6. A proibição de decisão surpresa, com obediência ao princípio do contraditório, assegura às partes o direito de serem ouvidas de maneira antecipada sobre todas as questões relevantes do processo, ainda que passíveis de conhecimento de ofício pelo magistrado. O contraditório se manifesta pela bilateralidade do binômio ciência/influência. Um sem o outro esvazia o princípio. A inovação do art. 10 do CPC/2015 está em tornar objetivamente obrigatória a intimação das partes para que se manifestem previamente à decisão judicial. A consequência da inobservância do dispositivo é a nulidade da decisão surpresa, ou decisão de terceira via, na medida em que fere a característica fundamental do novo modelo de processualística pautado na colaboração entre as partes e no diálogo com o julgador".

 

 O mesmo fundamento foi utilizado em caso que, na origem, o juiz sentenciante decretou a prescrição do direito do autor, sem que as partes tenham se manifestado sobre o fundamento adotado (AgInt no AREsp 1.743.765/SP, DJe 13/12/2021).

 

 4. Conclusão

 

Assim, conclui-se que a vedação a decisão surpresa decorrente do princípio do contraditório tem por objetivo permitir às partes, em diálogo com o julgador, o exercício das faculdades de participação nos atos do processo e de exposição de argumentos para influenciar positivamente na decisão judicial, impondo aos juízes o dever de cooperação, mesmo em face de matérias de ordem pública e apreciáveis de ofício, devendo ser facultada prévia manifestação dos sujeitos processuais a respeito dos elementos fáticos e jurídicos que serão considerados no julgamento da causa.

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